domingo, maio 24, 2009

Ser, ter, fazer

Desde que o mundo é mundo, e mais especificamente desde que o capitalismo é capitalismo, existe a turma do deixa-disso a pregar: é o ser, meus caros, não o ter que interessa.

Queria dizer aqui que o tanto que essa frase me soa antiquada, tamanha minha convicção que a dialética entre ser e ter está (ou deveria estar) superada. Queria, mas não posso: ontem li no jornal um senhor que dizia que um ser humano que chegou aos 50 anos sem um rolex desperdiçou sua vida – prova de que os comunistas e budistas de plantão ainda têm muito trabalho pela frente.

De qualquer forma, acredito mesmo que, em algum lugar entre as décadas de 1970 e 1980 o mundo se decepcionou de verdade com o deus-dinheiro. A gente continua querendo ter, claro, mas o consumo deixou de ser uma profissão de fé. Só faz das compras um assunto quem realmente não tem mais o que dizer (caso daquele tal ali em cima).

O que eu acho é que, muito mais do que ter, a preocupação existencial do mundo moderno é uma questão de fazer. Num grupo de pessoas minimamente saudáveis, ninguém mais é pesado socialmente pelo quilate do porta-moedas, mas pelo grau de importância da atividade que se exerce. E é esta a minha mais nova teoria de botequim (estavam com saudades?): estamos em plena ditadura do verbo fazer.

Para uns, vai ser interessante aquele que salva vidas. Para outros, aquele que comanda grandes corporações. O que escreve livros. O que constrói casas. O que vende e compra ações. O que defende causas judiciais. O que canta. O que toca um instrumento. Faça o que for, mas faça bem – e de preferência faça muito. Quanto mais ocupado, melhor.

Coitado do ser, né? Acho que nunca vai chegar a vez dele.

10 comentários:

Amanda Lourenço disse...

Eh verdade, Carol, o fazer domina. E não somente no sentido de profissões, mas de ocupar o tempo em geral. De alguma forma, resolver ficar em casa num fim de semana e não fazer nada se tornou uma resposta inconcebivel para os conhecidos que perguntam, e ai, o que voce fez esse fds?

Agora a disputa entre o ser e o ter ainda é ganha facil pelo ter. O tanto de bobeiras que as pessoas compram...

Mariana disse...

Apesar do TER ainda ter muito espaço, concordo que o FAZER esta ganhando muito terreno. E alem de sofrermos pressões para fazer alguma coisa, nós nos cobramos também. Ficar sem FAZER nada gera muita culpa e insatisfação.

abraço

Ana Chalub disse...

quando as pessoas descobrem que eu tenho o período da manhã livre e trabalho seis horas por dia tentam, de todas as formas, fazer com que eu me sinta mal, culpada por trabalhar tão "pouco"... ninguém quer saber se sou feliz no trabalho, se gosto do que faço, se tem alguma importância para as outras pessoas. nem mesmo sabem o volume de trabalho contido nessas seis horas (que às vezes viram sete, oito...).

e se eu digo que tirei a manhã para caminhar com o cachorro ou pra ir à água mineral, pronto: sou considerada uma inútil. se bobear, devo ter virado alguém desinteressante, por não trabalhar como uma louca, não carregar o mundo nas costas, fazendo mil horas-extras que nunca serão pagas - ou serão, mas prefiro não fazer e não receber!

m. disse...

e quando a gente não sabe bem o que fazer? faz tudo que aparecer? não faz nada? ou uma terceira ou quarta... coisa?

Felipe disse...

Engraçado é que quando o que a gente faz no tempo livre não é uma pós, não é um MBA corporativo nem um curso de extensão em jornalismo econômico ou outra graduação, tem gente que acha você imaturo.

Uma das conclusões a que eu cheguei no ano passado, o primeiro em muito tempo em que passei a ter um período completamente livre todos os dias (a noite, no caso) é que eu não quero fazer nenhuma pós por equanto. Porque nesse tempo todo eu li uns 15 livros muito bons, eu aprendi a tocar algumas coisas na guitarra, eu vi tanto seriado com legenda em inglês que meu inglês está afiado (modéstia à parte), eu joguei videogame sem constrangimento e, mais do que isso, pude me dedicar as relações humanas,conversar com pessoas que estão longe (via internet ou qq outra coisa), escrever bastante e interagir socialmente em todos os sentidos que a palavra permite.

E sabe de uma coisa? Eu me sinto muito mais evoluído, capaz e direcionado por agir assim.

O meu "fazer nada" é, na verdade, um "fazer tudo".

O problema do "fazer" é que esse fazer se refere a fazer coisas chatas ou que tenham algum sentido diretaente relacionado à progressão da carreira. Blah!!!

Viva o Peter Pan!!!

Beijocas

Anônimo disse...

seja pouco, mas seja você. essa foi a frase que li numa festinha ontem, que aliás, tenho que comentar com você (um pouco mais) ao vivo. ;-) eu ando cansada de fazer, te juro, e quero, mesmo que seja pouco, ser eu mesma. tem como!? :)) beijo, mana, tchamo!

Helena disse...

Concordo totalmente com a tua conclusão. Estava com isso na cabeça e fico feliz de encontrar outras pessoas que compartilham da mesma idéia. E acrescento um outro verbo a tua conclusão: viajar. Não que viajar seja ruim, é claro, é ótimo, mas algumas pessoas viajam sem sentido nenhum, parece que por concorrência, para poder dizer que conhece "mais" lugares "mais" interessantes... e às vezes nem aproveitam aquilo de novo que estão conhecendo. Parece que o único objetivo é ter um monte de fotos no álbum do orkut para mostrar o quão são viajadas. E não conhecem as coisas interessantes do seu bairro, da sua cidade... sei lá, posso estar enganada, mas tenho a sensação que o "viajar" está junto ao "fazer".

Leandro Wirz disse...

Ótima teoria de botequim! O ter o e o ser se misturaram na pós-modernidade. E o ter é uma expressão do ser. Eu sou aquilo que consumo. Não só o que consumo, mas também o que consumo. Quanto ao fazer, sei não. A maioria da população continua se curvando, venerando celebridades que não fazem p nenhuma. Mas que têm muito.

Leandro Wirz disse...

E viva o nadismo.

Anônimo disse...

mas você não acha que o "fazer" está intrisecamente ligado ao "ser"? Afinal, na maioria das vezes, a gente escolhe o que a gente faz, e as nossas escolhas são um reflexo da nossa mente, não? A gente imprime a nossa marca no que faz, e logo o que a gente faz tem um pouco da gente.