quarta-feira, março 24, 2010

O vazio

Quando eu vim para Paris minha vida mudou. E eu não estou falando (só) do que sempre acontece quando se muda de pais.

Meus filhos tinham quatro meses, eu começava a aprender a ser mãe - e continuo começando. Deixei emprego estável e o que vem com ele: rotina, status, salário. Da agitação habitual de uma agenda de telefones de quem sempre morou na mesma cidade, passei a contar nos dedos da mão - de só uma - os amigos a quem poderia ver regularmente.

Sempre tive uma atitude positiva em relação a vida e não entendi nada quando, dois anos depois disso, eu fiquei triste. Não vi a onda vindo. Quando dei por mim, estava lá no meio, me afogando nas minhas próprias lágrimas, que nem a Alice.

Que nem a Alice, caí no buraco escuro de dentro de mim mesma. Sem expediente a cumprir, sem agenda social intensa, sem uma rotina rígida e com os meninos caminhando saudavelmente em suas pequenas vidinhas independentes, eu estava entregue à liberdade total. E não tinha a menor ideia do fazer com ela.

Na prática, claro, a tal liberdade total era completamente limitada pelo muito tempo que continuava passando com os meninos, pelo mestrado em curso e pelos frilas que nunca deixei de fazer. Mas sentir que cada passo do meu dia era minha escolha - estar fora da engrenagem automática da rotina - tornava essa liberdade palpável, urgente, quase opressora.

Muitos dos que sonham em ter tempo para tudo o que importa na vida custam a imaginar - e a acreditar - na relação estreita que existe entre a liberdade total e o vazio que cada um de nós carrega no peito (na barriga, na garganta ou onde quer que seja seu depósito de somatizações).

Muitos dos que justificam mil compromissos que os amarram - e lamentam: "quem me dera!", "um dia me lanço!" - no fundo adivinham a finura da linha que separa liberdade de vazio e, por medo, jamais ousam deixar a engrenagem.

Eu não sabia o que estava fazendo quando fiz. Quando acabei de cair, dei de cara com o monstro. Como não tinha outra escolha, fiz um carinho no seu pelo cor de petróleo e ficamos amigos.

Daí ele me devolveu meu tempo - todo o tempo do mundo - e cada segundo passou a fazer sentido.

17 comentários:

Mari disse...

texto lindo Carol!!!
Adorei! bjus!

Princess Deluxxe disse...

monstrinhos de estimação.
cada um coleciona diferentes versões deles. e cada um, a seu modo, vai tentando viver com essas companhias estranhas.
=)

bjoss

Renata Inforzato disse...

Oi carol

Leio seu blog há algum tempo, mas hj senti necessidade de comentar. é que sou jornalista tb e estou indo pra fazer 4 meses de francês, sozinha. Confesso que estou com tanto medo de sentir o vazio e a solidão, que estou ficando triste. Justo agora que meu sonho vai se realizar, estou me sentindo triste...É fogo! rsrsrs

Unknown disse...

Oi Carol, ainda estou na primeira metade dessa historia, e ainda não ousei chegar perto do meu monstro. Perfeito seu texto. bj

Felipe disse...

Projeto Carol 2012!!!

Bailarina disse...

E como já dizia o Paulinho Moska: "o vazio é o meio de transporte pra quem tem coração cheio" ! Beijos, querida! Sei exatamente do que vc está falando!

Pri S. disse...

Espero que um dia eu transcenda meus monstrinhos tb... Por enquanto estou aprendendo a viver a minha nova vida. Não é em Paris, mas a alteração de rotina foi intensa. Mas chego lá... rs Adorei o texto!

Unknown disse...

Oi Carol

Todos nós temos os nossos monstros. E pelo visto, vc conseguiu dominá-lo.Essa insegurança, esse momento depressivo é normal, ainda mais quando vamos para um país como a França, onde o temp ruim ajuda a aumentar nossa fossa...

bjocas
luiza
www.oguiadeparis.blogspot.com

Anônimo disse...

Que beleza de texto. Enfrentar esse monstro exige coragem, mas nos traz recompensas valiosas.

Ana Pereira disse...

Carolzinha, você escreve como ninguém! Adoroooo esse blog mais que tudo. :]

Carla Link disse...

Muito bom esse texto. A díficil arte de viver com nós mesmos! é um caminho a ser percorrido e trabalhado dia a dia!
:)
bjos

naire valadares disse...

Lindo! Simples, concreto, direto. Conheço uma história igual a esta. Vou passear por aqui sempre, também falo esta lingua, dá uma olhada: www.turbantedanaire.blogspot.com
beijo

naire valadares disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
rc disse...

é isso aí... "é preciso ter coragem" etc. e tal.

Fe K. disse...

Me traduziu como ninguém...Virei fã! Beijo e muita luz....

Carol Nogueira disse...

Renata Inforzato,
procurei seu email pra te escrever personalizadamente (sempre acho que as pessoas não vão ler minhas respostas em comentários antigos...) mas não encontrei. Queria só te dizer que o medo, a ansiedade e até mesmo a eventual melancolia que possa surgir desse contato com a gente mesmo não só é natural como faz a gente crescer DEMAIS. Eu definitivamente não sou a mesma pessoa que era quando vim pra cá. E isso é maravilhoso. A gente só precisa estar de peito aberto pra tirar o melhor de tudo. É preciso ter coragem, etc, como diria o RC. :) Beijo grande e boa sorte!
E muitos beijos a todos os outros fofos e fofas que vêm por aqui.

Carmen Nistal disse...

Queria muito deparar com o meu monstro peludo ....em Paris, q eu amo demais...belo texto!